terça-feira, abril 17, 2012

Relação

Era uma relação. Daquelas como há muitas. Particular, nos seus particulares. Doente, morta de espaço, morta de tédio. Um ausente, três ausente. Só haviam dois manifestamente afastados. Não havia nada. Aliás, havia apego. Necessidade de pai, necessidade de mãe.

Era uma relação. Havia cobrança de uma felicidade prometida no futuro. Não tinham presente que não tinham o presente. Como areia fina que escorrega por entre as mãos, o tempo passava e com ele a infelicidade acumulava-se na contagem dos dias empacotados em caixotes.

Era uma relação. Daquelas com álbuns cheios de fotos, com menos amigos e com muitos familiares que não lhes pertenciam no sangue. Com amargura, terror, medo de perder o que se conhecia. Ao menos ali reconhecia-se o cheiro, a cor e a textura. Não era bem o conforto, porque conforto era não estar perto do outro. Conforto era sonhar. Sonhar e esconder.

Era uma relação. Daquelas em tudo parecia estar bem. Em que se alimentava a ilusão e a aparência. Daquelas em que se falava para ser ouvido, mas o outro era surdo e por isso não conseguia ver.

Era uma vez uma relação.

quarta-feira, março 24, 2010

O Elefante Acorrentado

"Não consigo - disse-lhe. - Não consigo!
- Tens a certeza? - perguntou-me ele.
- Tenho! O que eu mais gostava era de conseguir sentar-me á frente dela e dizer-lhe o que sinto... Mas sei que não sou capaz.
O gordo sentou-se de pernas cruzadas à Buda, naqueles horríveis cadeirões azuis do seu consultório. Sorriu, fitou-me nos olhos e, baixando a voz como fazia sempre que queria que o escutassem com atenção, disse-me:
- Deixa-me que te conte...
E sem esperar pela minha aprovação, o Jorge começou a contar.

Quando eu era pequeno, adorava o circo e aquilo de mais gostava eram os animais. Cativava-me especialmente o elefante que, como vim a saber mais tarde, era também o animal preferido dos outros miúdos. Durante o espectáculo, a enorme criatura dava mostras de ter um peso, tamanho e forças descomunais... Mas, depois da sua actuação e pouco antes de voltar para os bastidores, o elefante ficava sempre atado a um pequena estaca cravada no solo, com uma corrente a agrilhoar-lhe um das suas patas.
No entanto, a estaca não passava de um minúsculo pedaço de madeira enterrado uns centímetros no solo. E, embora a corrente fosse grossa e pesada, parecia-me óbvio que um animal capaz de arrancar uma árvore pela raiz, com toda a sua força, facilmente se conseguiria libertar da estaca e fugir.
O mistério continua a parecer-me evidente.
O que é que o prende, então?
Porque é que não foge?
Quando eu tinha cinco ou seis anos, ainda acreditava na sabedoria dos mais velhos. Um dia, decidi questionar um professor, um padre e um tio sobre o mistério do elefante. Um deles explicou-me que o elefante não fugia porque era amestrado.
Fiz, então, a pergunta óbvia:
- Se é amestrado, porque é que o acorrentam?
Não me lembro de ter recebido uma resposta coerente. Com o passar do tempo, esqueci o mistério do elefante e da estava e só recordava quando me cruzava com outras pessoas que também já tinham feito essa pergunta.
Há uns anos, descobri que, felizmente para mim, alguém fora tão inteligente e sábio que encontrara a resposta:
O elefante do circo não foge porque esteve atado a uma estaca desde muito, muito pequeno.
Fechei os olhos e imaginei o indefeso elefante recém-nascido preso à estaca. Tenho a certeza de que naquela altura o elefantezinho puxou, esperneou e suou para se tentar libertar. E, apesar dos seus esforços, não conseguiu, porque aquela estaca era demasiado forte para ele.
Imaginei-o a adormecer, cansado, e a tentar novamente no dia seguinte, e no outro, e no outro... Até que um dia, um dia terrível para a sua história, o animal aceitou a sua impotência e resignou-se ao seu destino.
Esse elefante enorme e poderoso, que vemos no circo, não foge, porque coitado, pensa que não é capaz de o fazer.
Tem gravada na memória a impotência que sentiu pouco depois de nascer.
E o pior é que nunca mais voltou a questionar seriamente essa recordação.
Jamais, jamais tentou pôr novamente à prova a sua força...
- E é assim a vida, Damião. Todos somos um pouco como o elefante do circo, seguimos pela vida fora atados a centenas de estacas que nos coarctam a liberdade.
Vivemos a pensar que "não somos capazes" de fazer montes de coisas, simplesmente porque uma vez, há muito tempo, quando erámos pequenos, tentámos e não conseguimos.
Fizemos, então o mesmo que o elefante gravámos na nossa memória esta mensagem: "não consigo e nunca hei-de conseguir."
Crescemos com esta mensagem que impusemos a nós mesmos e, por isso, nunca mais tentámos libertar-nos da estaca.
Quando, por vezes, sentimos as grilhetas e as abanamos, olhamos de relance para a estaca e pensamos:
Não consigo e nunca hei-de conseguir.
O Jorge fez uma longa pausa. Depois, aproximou-se, sentou-se no chão à minha frente e prosseguiu:
- É isto que se passa contigo, Damião. Vives condicionado pela lembrança de um Damião que já não existe, que não foi capaz.
"A única maneira de saberes se és capaz é tentando novamente, de copo e alma... e com toda a força do teu coração.""

do Livro "Deixa-me que te Conte" de Jorge Bucay

segunda-feira, março 08, 2010

.. e porque tudo conta. até os segundos...


O capricho de um segundo

roubou-me o meu futuro
provisoriamente inteiro.
Hei-de reconstruí-lo ainda mais belo
como o imaginava desde o princípio.
Hei-de reconstruí-lo sobre esta terra firme
que se chama a minha vontade.
Hei-de elevá-lo sobre os altos pilares
que se chamam o meu ideal.
Hei-de dotá-lo de um subterrâneo secreto
que se chama a minha alma.
Dotá-lo-ei de uma alta torre
que se chama solidão.

Edith Sodergran

terça-feira, setembro 22, 2009

Leituras



"É tão estranha a sensação de não viver. De estar só à espera que aconteça. Olhar para trás e ver que em quase meio ano nada aconteceu. Pelo menos comigo. (...) eu estou em stand by. (...) Como os passageiros à espera de um outro destino naquelas salas de aeroporto que são onde melhor se ouve a solidão de estarmos tão perdidos assim como eu aqui, que por momentos nos transformamos em verdadeiros fantasmas, sem sombra sequer, sem nada. Até acontecer alguma coisa. Vai ter de acontecer alguma coisa. E não acontece."

Pedro Paixão, Viver Todos os Dias Cansa.

Este é um daqueles autores supreendentes, e este foi um livro que se leu tão rapidamente que soube a pouco.. mal posso esperar por ter nas minhas mãos outro livro de Pedro Paixão.

sexta-feira, agosto 14, 2009

Paraísos

(foto de ADM/ António)

No algarve, o meu algarve, ainda se encontram paraísos perdidos a beira-mar. Ainda se encontram pequenos locais sagrados, locais onde a mão humana ainda não chegou cega e sedenta de destruição.

Adoro esta terra e adoro os seus contrastes.

O que me prende aqui? Acho que é o cheiro, a cor.. É o azul do céu brilhante que se cruza com outros tons verde-água no horizonte.

É o pôr do sol pelas 22h ,no pico do verão, que se perde numa paleta de vermelhos, laranjas e amarelos, que formam cores que duram apenas segundos de sensações e, que perduram na memória em forma de fotografia.

É o verde agreste da serra, que se perde em vistas infinitas de cheiros arrepiantamente quentes e que invadem o corpo com a vontade de se perder por ali.

É o Algarve perdido no encontro de raízes de quem o visita e já não quer sair de lá.

Eu nasci por aqui e, sou dona de um sentimento de pertença a tudo isso. Estou longe, mas de cada vez que chego pela A2, abrando na chegada ao Algarve, abro a janela, para ser invadida pelos cheiro das plantas agrestes que teimam em cheirar. É o Algarve, no seu melhor, no seu sossego pleno de sensações.

Deixo aqui uma amostra daquilo que ando a ver, a viver e a sentir por aí..

Praia da Terra Estreita, conhecem? Não há adjectivos suficientes para qualificar este lugar, mas numa tentativa vã, vou tentar dizer o que por lá senti. A natureza, por aqui, continua intacta e protegida. Tem bandeira azul, como em muitas praias no sotavento algarvio, o acesso é por barco (de 10 em 10 min.). O sossego é a palavra-chave. Pouca gente. Água muito quente.. Mais? Deixo-vos um convite para lá irem. Não vão querer outra coisa.

(foto de Fitopaldi)(foto de allcolorshandmade)



sábado, julho 18, 2009

Da Transformação

(Carta de Tarot o Julgamento do Baralho Shadowscape)

Os últimos tempos têm sido no mínimo complexos. A expressão mais usada tem sido: “a realidade não consegue superar a ficção!” E é um facto que assim o é. É incontornável, irrefutável e inegável.

Neste momento, o que sinto é que (e usando a expressão de um livro), só o amor é real. Tenho vindo a ficar reduzida ao mínimo, tudo o que é supérfluo por uma via ou por outra tem-me sido retirado sem qualquer meiguice. Não falo de questões materiais, falo de crenças. Todas elas, as crenças, caem à velocidade da luz. E na essência, considero-me mais perto de a qualquer momento poder vir a receber-me novamente de volta a casa.

Uma das crenças, associada ao amor, tem-me feito perceber da questão da incondicionalidade do amor. Tudo o que não pertence ao amor, tudo o que confunde o amor, ou melhor dizendo, tudo aquilo que nos distrai do foco do amor, tem sido colocado para trás das costas mal se observa o intuito da distracção. Não sei se é a isto que se pode chamar de observar fora de nós. Mas considero que deve de andar lá por perto.

O centramento nos problemas, desgasta, corrói e desidrata qualquer relação. E às vezes de uma forma irreversível. O foco no amor, na cumplicidade, da não existência de temas tabus, de se chamarem os nomes às coisas faz com o Amor seja uma presença constante. As interferências externas, podem estar sempre por perto mas nunca entrarem no jogo da relação a dois. Elas, não pertencem aí. Mas essa é uma escolha, a de não entrarem, tal qual como quando se permite que entrem. O truque aqui, a meu ver, é constância da presença, do estar juntinho a todo o momento para encarar a realidade como ela é. E não importa qual é a cor, qual é a tonalidade do mundo cá fora. O que importa é a cor que se quer dar a todo o momento à celebração da vida, da existência e do Amor. O que importa de facto, é olhar para aquilo que é verdadeiramente importante, o encontro de duas Almas que se querem bem em qualquer circunstância.

Saudações Neptunianas!